terça-feira, 8 de dezembro de 2009

"O Google é uma tragédia para os jovens"

O comissário da nova exposição no Louvre, em Paris, fala do lugar que as listas ocupam na história da cultura e dos modos como tentamos não pensar na morte. Um intelectual em discurso directo

As listas estão na origem da cultura. Fazem parte da história de arte e da literatura. De que precisa a cultura? De tornar o infinito compreensível . Também precisa de criar ordem - nem sempre, mas frequentemente. E, enquanto seres humanos, como enfrentamos o infinito? Como se pode tentar captar o sentido do incompreensível? Por meio de listas, catálogos e colecções em museus, e recorrendo a enciclopédias e dicionários. Há um fascínio em enumerar as mulheres com quem Don Giovanni dormiu: 2063, a acreditar em Lorenzo da Ponte, libretista de Mozart. Também temos listas inteiramente práticas - listas de compras, testamentos, ementas - que são actos culturais por mérito próprio.


A pessoa culta deve ser vista como uma guardiã que tenta impor a ordem nos locais onde predomina o caos?
A lista não destrói a cultura; cria-a. Para onde quer que olhe, na história da cultura, há-de encontrar listas. Com efeito, há uma gama estonteante: listas de santos, de exércitos e plantas medicinais, de tesouros e de títulos de livros. Pense-se na natureza das colecções do século XVI. Aliás, os meus romances estão cheios de listas.
Os contabilistas fazem listas, mas elas também existem nas obras de Homero, James Joyce e Thomas Mann.
Pois. Mas estes, obviamente, não são contabilistas. No "Ulisses", James Joyce descreve o modo como o seu protagonista, Leopold Bloom, abre as gavetas e tudo o que nelas encontra. Eu considero isso uma lista literária, e ela diz muito sobre Bloom. Ou então tomemos Homero, por exemplo. Na "Ilíada", ele tenta dar a noção do tamanho do exército grego. De início, recorre a comparações: "Tal como um grande incêndio de floresta, rugindo no topo de uma montanha, se avista ao longe, assim também, ao marcharem, o brilho das armaduras iluminava o firmamento". Mas não fica satisfeito. Não consegue encontrar uma boa metáfora e, por isso, pede às musas que o ajudem. Então tem a ideia de enumerar muitos, muitos generais e os seus navios.
Mas, ao fazê-lo, não estará a desviar-se da poesia?
No princípio, pensamos que uma lista é uma coisa primitiva e típica das culturas mais antigas, que não tinham uma concepção exacta do universo e que, portanto, estavam limitadas a enumerar as características a que conseguiam dar nome. Contudo, na história da cultura, as listas continuaram a prevalecer. Não são de modo algum uma mera expressão das culturas primitivas. Na Idade Média já havia uma imagem muito clara do universo e também havia listas. Uma nova mundividência baseada na astronomia dominou a Renascença e a época do Barroco e as listas continuaram a ser usadas. Também na era pós- -moderna as listas têm um papel importantíssimo . Têm uma magia irresistível.
Mas por que razão Homero enumerou todos aqueles guerreiros e navios se sabia que nunca poderia dar nomes a todos?
A obra de Homero toca repetidamente no topos do inexprimível. As pessoas fazem sempre isso. Sempre sentimos fascínio pelo espaço infinito, pela interminável série de estrelas e de galáxias. Como se sente uma pessoa quando olha para o céu? Pensa que não tem línguas suficientes que descrevam o que vê. Mesmo assim, as pessoas nunca deixaram de descrever o céu, recorrendo ao simples expediente de enumerarem o que vêem. Com os amantes passa-se o mesmo. Sentem uma deficiência na linguagem, uma falta de palavras que exprimam os seus sentimentos. E será que alguma vez os amantes desistem de o tentar fazer? Fazem listas: os teus olhos são tão belos, a tua boca também, e o teu colo... É possível ser muito pormenorizado.
Porque perdemos tanto tempo a tentar completar coisas que, de um ponto de vista realista, não se podem completar?
Nós temos um limite, um limite muito desanimador e humilhante: a morte. Por isso gostamos de tudo o que para nós não tem limites e que, portanto, não tem fim. É uma fuga que nos distrai de pensar na morte. Gostamos de listas porque não queremos morrer.
Na sua exposição no Louvre também vai expor obras das artes visuais, como naturezas-mortas. Mas essas pinturas têm molduras, ou seja, limites, e não podem representar nada mais do que aquilo que de facto representam.
Pelo contrário, o que nos leva a gostar tanto delas é acreditarmos que conseguimos ver nelas para além disso. Quem contempla uma pintura sente necessidade de abrir a moldura e ver como são as coisas à esquerda e à direita do quadro. Esse tipo de pintura é verdadeiramente como uma lista, um pedaço recortado do infinito.
Porque são essas listas e acumulações tão importantes para si?
As pessoas do Louvre contactaram-me e perguntaram-me se eu gostaria de comissariar uma exposição nesse museu. Pediram-me que apresentasse um programa de actividades. Só a ideia de trabalhar num museu foi suficiente para me atrair. Estive lá sozinho recentemente e senti-me como uma personagem de um romance de Dan Brown. Foi simultaneamente estranho e maravilhoso. Percebi imediatamente que a exposição iria ter como tema central as listas. Porque me interessa tanto esse tema? Não sei bem. Gosto de listas pela mesma razão que outras pessoas gostam de futebol ou de pedofilia. Gostos não se discutem.
Mesmo assim, é famoso por saber explicar as suas paixões ...
... mas não por falar sobre mim. Ora veja, desde os dias de Aristóteles que temos tentado definir as coisas com base na respectiva essência. A definição de homem? Um animal que age de maneira deliberada. Ora, os naturalistas levaram 80 anos a arranjar uma definição para o ornitorrinco. Foi extremamente difícil descrever a essência desse animal. Vive debaixo de água e em terra, põe ovos e, no entanto, é mamífero. E como era essa definição? Era uma lista, uma lista de características.
Seria certamente possível defini-lo se fosse um animal mais convencional.
Talvez, mas será que isso tornaria o animal interessante? Pense num tigre, que a ciência classifica como predador. Como iria uma mãe descrever um tigre ao seu filho pequeno? Provavelmente através de uma lista de características: o tigre é grande, é um felino, amarelo, às riscas, e forte. Só um químico se referiria à água como sendo H2O. Mas eu digo que é líquida e transparente, que a bebemos e que nos podemos lavar com ela. Agora pode finalmente perceber aquilo de que estou a falar. A lista é a marca de uma sociedade altamente avançada e culta porque nos permite questionar as definições essenciais. A definição essencial é primitiva em comparação com a lista.
Pode parecer que está a dizer que devemos parar de definir as coisas e que haveria vantagem se, em vez disso, as contássemos e enumerássemos.
Pode ser libertador. A idade do Barroco era uma época de listas. De repente, todas as definições eruditas feitas na era precedente deixaram de ser válidas. As pessoas tentaram ver o mundo a partir de uma perspectiva diferente. Galileu revelou novos pormenores sobre a Lua. E, na arte, as definições consagradas foram objectivamente destruídas e a diversidade de temas expandiu-se enormemente. Por exemplo, eu vejo as pinturas do Barroco holandês como listas: as naturezas-mortas com todos aqueles frutos e as imagens de gabinetes de curiosidades opulentos. As listas podem ser anárquicas.
Mas também disse que as listas podem trazer ordem. Quer então dizer que tanto a ordem como a anarquia se aplicam neste caso? Isso tornaria perfeitas para si a internet e as listas criadas pelo motor de pesquisa Google.
Sim, no caso do Google, ambos os conceitos convergem. O Google cria uma lista, mas no momento em que olho para a lista que o Google gerou, ela já mudou. Essas listas podem ser perigosas - não para os adultos como eu, que adquiriram conhecimento de outro modo -, mas para os jovens, para quem o Google é uma tragédia. As escolas deveriam ensinar a arte da discriminação.
Está a dizer que os professores deviam ensinar aos estudantes a diferença entre bom e mau? E, nesse caso, como o fariam?
A educação deveria regressar às estratégias das oficinas da Renascença. Aí, os mestres podiam não ser capazes de explicar aos alunos por que razão uma pintura era boa em termos teóricos, mas faziam-no de maneiras mais práticas. Olha, isto é o aspecto que o teu dedo pode ter e este é aquele que deve ter. Olha, esta é uma boa combinação de cores. A mesma abordagem deveria ser utilizada nas escolas quando se lida com a internet. O professor deveria dizer: "Escolham qualquer assunto: a história da Alemanha ou a vida das formigas. Pesquisem em 25 páginas web diferentes, comparando-as, e tentem descobrir qual tem informação importante e pertinente". Se dez páginas disserem a mesma coisa, pode ser sinal de que essa informação está correcta. Mas isso também pode acontecer porque alguns sites se limitaram a copiar os erros dos outros.
Quanto a si, é mais provável que trabalhe com livros; tem uma biblioteca de 30 mil volumes. Provavelmente não funciona sem uma lista ou catálogo.
Receio bem que, nesta altura, já sejam 50 mil livros. Quando a minha secretária os quis catalogar, pedi-lhe que não o fizesse. Os meus interesses mudam constantemente, tal como a minha biblioteca. A propósito, se os nossos interesses mudarem constantemente, a nossa biblioteca dirá algo de diferente sobre nós. Além disso, mesmo sem um catálogo, vejo-me forçado a lembrar-me dos meus livros. Tenho uma sala para literatura com 70 metros de comprimento. Percorro-a várias vezes por dia e sinto--me bem quando o faço. Cultura não é saber quando morreu Napoleão. Cultura significa saber como vou descobrir isso em dois minutos. Claro que, hoje em dia, posso encontrar esse tipo de informação na internet em menos de um ai. Mas, como disse, com a internet nunca se sabe.
Incluiu uma lista simpática feita pelo filósofo francês Roland Barthes no seu novo livro, "A Vertigem das Listas". Ele enumera as coisas de que gosta e as de que não gosta. Gosta de salada, de canela, de queijo e de especiarias. Não gosta de ciclistas, de mulheres de calças compridas, de gerânios, de morangos e de harpa. E o senhor?
Eu seria louco se respondesse; significaria rotular-me. Fiquei fascinado com Stendhal aos 13 anos e com Thomas Mann aos 15 e, aos 16, adorava Chopin. A seguir, passei a vida a tentar conhecer o resto. Neste momento, Chopin voltou a estar no topo da lista. Quando interagimos com as coisas da nossa vida, tudo muda. Se nada mudar, somos idiotas.

Exclusivo i /Der Spiegel





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